Um contributo para o PS
7 FevFrancisco Assis no Público :
‘Realizar um congresso envolvendo a disputa pela liderança a poucos meses de eleições seria um erro político
O PS tem vivido dias agitados. Nada de inusitado. De estranhar seria que tudo fosse pacífico, harmonioso e inquestionável no interior do maior partido da oposição num momento histórico tão complicado como aquele que estamos a atravessar. Só uma organização política em estado de abulia pré-comatosa ofereceria um tal espectáculo de estabilidade moribunda. Não é felizmente o caso.
É porém verdade que dois factores concorrem para a dramatização de acontecimentos desta natureza: por um lado, a aversão ao debate e a demonização do conflito ínsitos à nossa idiossincrasia nacional e no fundo resultantes da perpetuação de uma estrutura mental prédemocrática ainda largamente disseminada na sociedade portuguesa; por outro lado, a sofreguidão que as democracias actuais revelam na busca de respostas simplistas para a complexidade que cada vez mais as atravessa e angustia. Aplicadas à avaliação de um acontecimento político concreto estas duas limitações produzem efeitos demolidores. Os analistas cedem à tentação moralista e os protagonistas sentem-se incentivados à submissão à tirania das emoções.
Como a retórica dominante não prima pela exigência, tudo o que comporta uma dimensão passional tende a transitar do domínio do trágico para o registo da telenovela e tudo o que poderia subsistir de racional corre o risco de desaguar no grande magma de um sentimentalismo omnipresente. Abunda a linguagem da indignação e nenhum estatuto consegue rivalizar com a condição de vítima. O que isto significa enquanto empobrecimento da discussão e degradação da qualidade da decisão é facilmente adivinhável.
De certa forma tudo isto perturbou a discussão ensaiada no seio do PS e prejudica a capacidade de compreensão do ocorrido. É por isso mesmo necessário realizar um esforço adicional para conseguir pensar o PS e o seu momento actual, procurando ir para além da contingência dos factos observados e tentando construir e tratar os problemas que realmente interessam. A minha condição de militante empenhado obrigame à realização pública de um exercício dessa natureza.
Recordemos sucintamente os factos em si. Vários antigos ministros de José Sócrates produziram declarações sucessivas no sentido da reclamação da realização de um congresso partidário antes das eleições autárquicas, o que provocou uma reacção de desconfiança da actual direcção política que vislumbrou aí um ataque organizado tendo em vista a tomada do poder interno; depois de alguma hesitação, o secretáriogeral reagiu, retomando o controlo do tempo político e propondo ele próprio a realização imediata de uma reunião magna em nome de uma necessária clarificação de águas; António Costa respondeu ao desafio admitindo a sua própria candidatura à liderança, se não houvesse uma nítida vontade de António Seguro em proceder ao reforço da unidade interna.
Como sabemos, tudo terminou com sonoros protestos de entendimento que, em princípio, conduzirão à adopção de uma plataforma estratégica comum. Um final aparentemente feliz não dispensa uma reflexão fecunda. Outros a têm promovido. Não posso deixar de dar o meu singelo contributo, que passarei a fazer com a brevidade exigida.
A partir desta minicrise há quatro tópicos que devem ser objecto de devido tratamento e que são os seguintes: a necessidade de consensualização de um modo de debate interno que salvaguarde a supremacia do pluralismo de opiniões; o tema do relacionamento com o passado recente; a questão central da definição de uma linha estratégica coerente e capaz de sustentar uma alternativa política nacional; a definição do princípio da unidade. Procedamos à sua análise caso a caso.
1 – Tópico do pluralismo – O que se passou nos últimos dias foi de molde a suscitar uma séria inquietação em relação a esta matéria. A tentativa de transformar o confronto político numa contraposição puramente moral, enunciada num registo aproximado às categorias emocionais próprias das telenovelas, prejudica o debate e enfraquece o espaço público interno. A direcção do partido tem o direito e o dever de se empenhar na concretização das linhas programáticas constantes da moção que viu aprovada em congresso e, para esse efeito, deve recorrer aos meios que considere indispensáveis, desde o recrutamento do pessoal político percebido como o mais apto até à opção por orientações políticas potencialmente fracturantes.
O que não pode é deixar-se inebriar pela aspiração do aplauso unânime e da adesão incondicional a ponto de passar a ver em cada divergência legítima a expressão de uma dissidência insidiosa. São inaceitáveis afirmações, infelizmente repetidamente proferidas, que procuraram anular a eficácia da crítica pela via da desqualificação ética dos seus autores. Esta confusão entre moral, emoções e política proporciona a instalação de um pântano em que dificilmente se pode estabelecer uma discussão séria entre propostas e visões alternativas. No Partido Socialista, grande partido democrático, portador de uma história densa, não há lugar para um discurso que em nome de uma suposta regeneração ética dê livre curso à mais cínica das demagogias.
2 – Tópico da história recente – É claro que o PS tem um problema com o seu passado imediato. Continuam a defrontarse duas opções igualmente erradas. De um lado os que gostariam de fazer da nostalgia um programa político futuro; do outro os que cultivam a ilusão adâmica de que tudo o que há de bom começou com eles. Uns remetem-se para o papel de adoradores de uma idade de ouro pretérita, os outros só conseguem conceber o que está para trás sob a forma de recalcamento.
É preciso sair desta dicotomia perniciosa. O Partido Socialista tem o dever de elaborar uma reflexão crítica sobre a sua experiência histórica recente, condição imprescindível para uma abordagem livre dos temas do presente e do futuro. Há agora condições excepcionalmente favoráveis para a realização de tal exercício, que deve ser tudo menos dilacerante.
3 – Tópico da clarificação estratégica. Este é o grande debate do futuro que deve concentrar o ideal das energias partidárias. Perante um governo de obediência doutrinária neoliberal e assustadoramente incompetente em diversas áreas, no contexto de uma Europa a atravessar uma profunda crise política e económica e numa altura de reformulação do pensamento inspirador da acção política da esquerda democrática, o Partido Socialista é obrigado a responder a questões difíceis com soluções credíveis e inovadoras. É natural que comecem a estruturar-se correntes de opinião internas animadas por propósitos diversos, nalguns casos antagónicos, em torno de algumas questões de fundo.
Poderá mesmo surgir num horizonte relativamente próximo um confronto entre defensores de um frentismo de esquerda e adeptos de um entendimento preferencial com um centro-direita imune à tentação neoliberal. O partido tem de estar preparado para acolher estas discussões e promover a realização de escolhas dolorosas sem risco de qualquer cisão grave. Nesta perspectiva, considero, como já várias vezes escrevi, que António José Seguro tem agido com sensatez e ponderação, colocando a agenda europeia no centro do debate nacional e evitando a cedência a pulsões demagógicas geradoras de fáceis efeitos mediáticos mas claramente contraproducentes no domínio dos resultados.
4 – Tópico da unidade – A unidade não pode constituir um fim em si mesmo, nem deve ser perspectivada como uma utópica tentativa de alcançar uma total identidade de pontos de vista na acção concreta. Só faz sentido quando entendida no plano igual dos princípios e enquanto garante de igual dignidade na participação de cada militante na vida partidária.
5 – Nota final – A realização de um congresso envolvendo a disputa pela liderança a poucos meses das eleições autárquicas teria constituído um dramático erro político. Há um tempo próprio para tudo. ‘
As reformas morrem às mãos de maus reformistas
17 JanFrancisco Assis no Publico :
‘ Cortar o Estado-Providência obriga a mudar o modelo de sociedade radicalmente. Esse é o erro genético do Governo ‘
O governo não tem condiçoes
14 Jan
” O ex-líder parlamentar socialista Francisco Assis considerou hoje que é mais importante o PS dizer que o Governo perdeu condições políticas para reformar do que sustentar que não tem mandato para cortar quatro mil milhões de euros.
Esta posição foi defendida por Francisco Assis após a sessão de abertura das Jornadas Parlamentares do PS, que decorrem até terça-feira em Viseu, numa intervenção em que também advertiu os socialistas para os perigos de “uma astúcia” do executivo PSD/CDS, segundo a qual as atuais medidas são “uma fatalidade” porque a alternativa é a crise política.
Na sessão de abertura das Jornadas Parlamentares do PS, o líder da bancada socialista, Carlos Zorrinho, voltou a sustentar que o atual Governo não tem mandato para cortar quatro mil milhões de euros na despesa do Estado.
Francisco Assis aceitou a tese de Carlos Zorrinho sobre a ausência de mandato do Governo, mas avisou que não é “prática” e que, em última instância, levará a uma disputa escolástica da qual ninguém sai vencedor.
“Embora compreendendo a preocupação do [Carlos] Zorrinho e de outros intervenientes políticos do PS que tem chamado a atenção – e bem – de este Governo não ter mandato para tomar determinadas decisões e impor determinados caminhos ao país, acho que a questão já não é só a de ter ou não ter mandato, sendo até mais prática: É saber se este Governo tem ou não condições, hoje, para conduzir o país e para fazer reformas”, referiu Francisco Assis.
Francisco Assis advertiu depois que a questão de o Governo ter ou não mandato para cortar quatro mil milhões de euros pode transformar-se “numa disputa escolástica” – e essa “é uma discussão em que nunca haverá um vencedor, porque eles [Governo] ficarão na sua teimosia e nós [PS] ficaremos na nossa convicção”.
“A questão é mais prática e é a de saber se este Governo tem hoje condições para mobilizar a sociedade portuguesa em torno de uma reforma séria seja em que domínio for. Ora, este é um Governo que entrou em conflito claro com o Presidente da República, que faz sucessivos orçamentos com suspeitas de inconstitucionalidades graves, que é incapaz de dialogar com as oposições na Assembleia da República e que dá sinais claros de desagregação interna. Verdadeiramente, este Governo perdeu todas as condições, o que do ponto de vista político é muito pior do que ter perdido o mandato”, defendeu o ex-líder parlamentar do PS.
Na sua intervenção, Francisco Assis advogou ainda que o PS “não pode ficar prisioneiro da última astúcia a que recorrem os governos que estão fechados num círculo e que já não sabem como sair dele”.
“Esse tipo de governos diz que sempre que a sua equipa é irremovível pela circunstância que o país não aguenta com uma crise política em cima de uma crise económica. Não podemos aceitar isso, porque não se governa sob uma lógica de fatalidade. Sobretudo em épocas de crise, como a atual, o pior que pode acontecer é ter como único horizonte de referência a fatalidade e não a esperança”, contrapôs Francisco Assis.
Fonte : LUSA
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A responsabilidade da Alemanha na crise das dívidas soberanas
28 DezO antigo ministro dos Negócios Estrangeiros Luís Amado publicou recentemente um livro em que, sob a forma de uma longa entrevista à jornalista Teresa de Sousa, realiza o balanço crítico da sua acção governativa e enuncia uma visão própria sobre as principais questões que se colocam à diplomacia portuguesa.
Um ponto particularmente interessante na referida entrevista é aquele em que Amado apresenta uma tese curiosa e repleta de significado acerca da origem da crise das dívidas soberanas que tem vindo a apoquentar a zona euro. Na sua perspectiva, para a génese dessa crise concorreu fortemente uma alteração do posicionamento estratégico da Alemanha em relação à Europa, que se começou a manifestar a partir de Junho de 2009, e que se consubstanciou em dois acontecimentos de peculiar relevo: no teor do parecer emitido pelo Tribunal Constitucional em relação ao Tratado de Lisboa, de orientação bem diversa do que havia sido elaborado a propósito do Tratado de Maastricht, e na aprovação por larga maioria no parlamento germânico de uma alteração constitucional consistente na adopção de uma norma destinada a impor limites rígidos aos valores do défice e do endividamento públicos.
Um ano antes da eclosão da crise grega, a Alemanha dava, deste modo, sinais claros de preocupação com o nível de endividamento das países europeus, com o que não poderia deixar de suscitar reacções por parte dos mercados financeiros internacionais.
Tendo intuído a importância do que se estava a passar, o antigo responsável pela diplomacia portuguesa pediu a um amigo, gestor de uma entidade bancária nacional, que realizasse em Janeiro de 2010 um levantamento da evolução dos spreads das dívidas públicas entre Junho e aquela data.
Feito esse exercício, constatou que, a partir de Setembro, começou a verificarse uma divergência nas trajectórias das linhas que reflectem a evolução do valor das obrigações do Tesouro dos países da zona euro. Esta alteração punha em causa uma crença até então prevalecente – a de que, ao abrigo da participação na moeda única, os vários Estados europeus não incorreriam no risco de degradação relativa das condições de concessão de empréstimos públicos.
Essa aparente garantia tinha funcionado até então. Tudo mudou a partir daí – assistimos não apenas ao fim da convergência como passámos a observar uma radical alteração da situação, com os países periféricos condenados ao pagamento de juros insustentáveis e os países do Norte e do Centro beneficiando de um tratamento excepcionalmente favorável.
A tese de Amado, que ele teve o condão de elaborar logo na altura e que o levou a sustentar publicamente posições então muito incompreendidas, acaba por responsabilizar de forma acrescida a Alemanha por tudo quanto tem sucedido nos últimos tempos. Na realidade, quando os governantes alemães tomaram isoladamente a decisão da alteração constitucional, era sabido que a União Europeia não estava institucionalmente preparada para acorrer prontamente a uma crise da dívida pública soberana, onde quer que fosse que ela ocorresse.
De certa maneira, a própria possibilidade de uma crise dessa natureza parecia excluída do horizonte europeu, dada a confiança depositada no mérito das regras de gestão orçamental inscritas no Pacto de Estabilidade. É certo que os alemães perceberam o risco da emergência da crise mas, ao agirem como agiram, acabaram, de algum modo, por precipitá-la e aprofundála.
Ao longo dos últimos três anos, confrontados com os receios de uma crise sistémica da zona monetária europeia e as crescentes dificuldades dos países do Sul, o Conselho, a Comissão e o BCE têm vindo a desbravar um caminho difícil e muito tortuoso, vendo-se obrigados, no meio de muitas hesitações, a adoptar atitudes e procedimentos pouco consentâneos com uma interpretação ortodoxa do conteúdo dos tratados.
Desde a concessão de empréstimos bilaterais até à alteração profunda do comportamento do BCE passando pela instituição do chamado Mecanismo Europeu de Estabilidade, múltiplas têm sido as iniciativas prosseguidas com o intuito de salvaguardar a integridade da zona euro. Convenhamos que foram dados passos importantes para evitar a consumação da tragédia e a situação é hoje, no plano europeu, mais auspiciosa do que há um ano atrás.
Há, porém, uma dimensão decisiva em que as coisas continuam a correr muito mal – a dimensão da economia real. Se é verdade que se avançou em áreas de extrema importância, como a da união bancária ou a do reforço dos mecanismos de articulação das políticas orçamentais, muito pouco se fez ainda no sentido da promoção do crescimento das economias mais débeis. Antes pelo contrário, os países mais prósperos, liderados pela Alemanha, continuam a impor aos países do Sul uma espécie de austeridade punitiva de trágicas consequências – impede a recuperação económica, dificulta o reequilíbrio das finanças públicas, gera anomia social e pode provocar o desmantelamento do Estado nas suas funções sociais e no seu papel de impulsionador da modernização económica.
Em Portugal, a situação é mesmo especialmente complicada, dada a subsistência de um Governo que concorda ideologicamente com a essência da austeridade punitiva e se tem revelado incapaz de elaborar um pensamento sério sobre a Europa e a nossa inserção nela.
Retomando o livro de Luís Amado, haverá que fazer referência a uma outra ideia igualmente importante aí expendida – o fracasso do projecto europeu significaria o declínio do Ocidente como ideia. Julgo que tem razão, já que nenhum Estado europeu estará em condições de enfrentar sozinho o novo panorama internacional com sucesso e sem sacrifício de um núcleo de valores fundadores deste espaço cultural na sua versão contemporânea. E, sem uma voz europeia forte, a comunidade transatlântica ficaria amputada de um pilar fundamental.
Para não soçobrar, a União Europeia não pode permitir que vários dos seus Estados-membros permaneçam atolados numa crise económica que começa a pôr em causa alguns avanços civilizacionais.
É fundamental, por isso mesmo, que em 2013 se comece a atribuir prioridade à questão da recuperação económica. Isso vai, decerto, levar também ao surgimento de um grande debate sobre a natureza do projecto europeu. Essa discussão é, aliás, cada vez mais inadiável.
A História do Comunismo
13 Dez
Para o PCP, reformar, ainda que numa óptica emancipadora, continua a ser uma traição imperdoável
1. Vinte e poucos anos depois da implosão da União Soviética e do seu império tentacular, desligada dos seus falhanços históricos concretos, a ideia comunista estará de volta? Gianni Vattimo, importante filósofo italiano contemporâneo, autor de uma das mais fecundas interpretações da pós-modernidade referenciada ao pensamento de Nietzsche e de Heidegger, acaba de proclamar a pertinência actual do marxismo-leninismo no livro que recentemente escreveu, em parceria com Santiago Zabala, intitulado Comunismo Hermenêutico, de Heidegger a Marx. Para Vattimo, só o comunismo, enquanto ideal forte, nos poderá salvar da tirania cientificista imposta no plano económico e que se limita a legitimar uma ordem social injusta. O ideal comunista, perspectivado como uma ambição radicalmente democrática e igualitária e defendido politicamente pelos mais débeis, os pobres, pode opor-se ao capitalismo hegemónico e impor-se como um novo horizonte de esperança em sociedades descrentes e desesperadas. O que parece haver de novo, e até mesmo extraordinário, nesta visão é a opção por um entendimento do marxismo como vontade e projecto moral, por contraponto a uma herança historicista e positivista que, em grande parte, determinou o curso anterior dessa corrente de pensamento. Vattimo exalta no marxismo-leninismo a célebre associação da electrificação com os sovietes, isto é, do impulso desenvolvimentista com a utopia de uma forma especial de democracia. Curiosamente aponta para a Venezuela de Hugo Chávez e a Bolívia de Evo Morales como os exemplos actuais onde tal associação se consubstancia. É caso para dizer que só um desencanto radical com o presente, uma absoluta desilusão com as democracias representativas ocidentais pode conduzir um grande intelectual europeu à aceitação de tão estranhas ilusões.
Lendo Vattimo recordo-me das páginas finais de O Passado De Uma Ilusão, obra magistral de François Furet e notável libelo acusatório contra o comunismo nas suas manifestações concretas. Nessas derradeiras folhas o grande historiador francês, finda uma cruel desmontagem da ilusão comunista, alerta com pungente lucidez para as consequências daí resultantes para o homem contemporâneo, doravante condenado a viver num estado de permanente angústia. O espírito moderno, profundamente democrático, convive mal com o fatalismo de uma sociedade dividida entre ricos e pobres e percebe como uma tragédia o confronto entre a afirmação dos direitos humanos e a deificação do mercado. Não é por isso de estranhar que se lance na procura de um ideal comunitário subsidiário de uma utopia igualitária. Ora o comunismo, enquanto ideia ou ilusão, representava essa aspiração. É verdade que, na sua roupagem marxista, aspirava a um estatuto científico e apontava para uma perspectiva teleológica da história, com o que trazia consigo a dimensão totalitária que tão dramaticamente o caracterizou nas suas formulações concretas.
Com Vattimo o marxismo-leninismo parece regressar como um refúgio último do espírito crítico, derradeira ocasião de afirmação da liberdade humana perante a asfixiante hegemonia do pensamento neoliberal erigido em descrição única e prescrição necessária nos planos económico e social. Por muito estranho que possa parecer, o filósofo italiano revaloriza o marxismo-leninismo enquanto condição de recuperação do pluralismo político e da liberdade de escolha dos cidadãos. Creio que está errado, mas que se tenha dedicado a tal exercício não pode deixar de suscitar a nossa reflexão.
2. O PCP realizou há poucos dias o seu XIX Congresso e aprovou um documento de orientação programática e estratégica que merece ser lido com atenção. Não há provavelmente em Portugal, por mais paradoxal que isso possa parecer, nenhum outro partido com tão pouca liberdade crítica e com tão intenso debate político como o PCP. Por isso mesmo as Teses agora aprovadas permitem-nos uma compreensão exaustiva da natureza, das intenções e do projecto político deste partido. Vale a pena analisá-las.
Comecemos pela linguagem. Está lá tudo o que identifica historicamente o movimento comunista internacional – a língua de madeira, o jargão ideológico, as limitações semânticas. Aquela linguagem não engana, remete-nos permanentemente para a coerência de um mundo mental fechado, assente numa representação simplista da realidade e encarcerado numa dialéctica infecunda. Folheiam-se as páginas e deparamo-nos sempre com a mesma árida vulgata marxista, devidamente amputada de qualquer veleidade imaginativa. A linguagem transformada numa prisão do pensamento. Estamos diante de uma nova escolástica, ineficaz na compreensão da realidade, útil no apuramento de uma convicção ilusória. Imagino milhares de militantes honestamente deleitados com esta recitação doutrinária, a que não falta por vezes a aparência de uma verdadeira grandeza moral.
Nalguns domínios as Teses são particularmente esclarecedoras. Para o PCP o fim da União Soviética e do modelo comunista nela inspirado constituiu a tragédia fundadora das últimas décadas. Ainda hoje lamentam tal acontecimento histórico, já porque terá provocado um retrocesso civilizacional nos países anteriormente designados por socialistas, já porque terá proporcionado uma expansão incontrolada do imperialismo capitalista. Para o PCP é irrelevante constatar que nenhum dos povos saídos dos regimes comunistas manifestou até hoje a mais ligeira intenção de aí retornar. Isso não conta para nada.
De tal perspectiva decorre uma curiosa interpretação do sistema internacional. A Coreia do Norte, o Laos, o Vietname, Cuba e a China são saudados como insubstituíveis focos de resistência ao avanço do modelo capitalista que tem a sua sede nos Estados Unidos da América. Não importa nada que estejamos a falar de algumas das mais atrozes ditaduras contemporâneas, já que para o PCP os direitos humanos, a democracia representativa e as liberdades públicas parecem permanecer num limbo meramente formal, e como tal desprovido de verdadeira substância concreta. A forma como abordam a questão síria é assaz elucidativa – para os comunistas portugueses o tirano Assad é uma inocente vítima do belicismo ocidental.
Por último, importa referir a maneira como continuam a desprezar a social-democracia, reduzida a um estatuto de corrente colaboracionista com o modelo capitalista na sua versão mais radical. Para o PCP, reformar, ainda que numa óptica emancipadora, continua a significar uma traição imperdoável.
Pergunto-me o que pensaria Vattimo de tão peculiares Teses. Como reagiria ele se confrontado com o universo mental dos comunistas portugueses. Continuaria a acreditar na pertinência do ideal marxista-leninista face ao capitalismo triunfante ou limitar-se-ia a desvalorizar como anacrónicas posições tão notoriamente insustentáveis?
Na verdade o comunismo depara-se com uma tragédia inultrapassável: a sua história não cessa de condenar a sua ideia. Se ameaça voltar é porque alguma coisa está a correr mal no campo do socialismo democrático. Essa é que deve ser a verdadeira inquietação da esquerda no nosso tempo.
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